16/10/12

Ler ao quilo

Não é aconselhável julgar um livro pela capa ou um leitor pelo número de livros que lê. Há leitores (e são cada vez mais) que leem "ao quilo". São facilmente identificáveis pelas pilhas de livros em espera que normalmente têm ao lado da cama, do sofá ou noutra localização estratégica. E nem é preciso visitá-los para saber que as pilhas existem porque se orgulham delas e as divulgam sem grande constrangimento. 

São pessoas que ocupam uma boa parte do seu tempo livre com a leitura. Quando não estão a ler, estão a comprar livros compulsivamente, a tentar resistir à força que os puxa para dentro de uma livraria aberta ou a falar sobre a pilha de livros que não para de crescer, sobre os novos acréscimos que a farão tocar o teto ou sobre o problema que reconhecem não conseguir enfrentar. Alguns participam em competições promovidas por sites da especialidade (LEIA 300 LIVROS NUMA HORA OU SEJA UM OVO PODRE ANALFABETO!), outros preferem não impor regras ao vício. 

Gostam de livros com muitas páginas porque aumentam o desafio. De preferência com capa dura porque são mais pesados e mais facilmente permitem que se vejam como cristos dos tempos modernos, arrastando tijolos de papel por autocarros e metropolitanos como quem arrasta cruzes para o calvário. Gostam de coisas claras, sem tiques e que se enquadrem sem vergonha num género. E sabem muito bem o que querem de cada género. Do sobrenatural, da ficção científica, do romance histórico, do folhetim erótico. Descrições que permitam conhecer as personagens da cor do cabelo ao número que calçam, passando pelo que costumam comer ao pequeno-almoço (torradas com manteiga, coelho à gaulesa ou sangue de virgem) e pelo que fazem quando não estão ocupadas a animar capítulos (ler filosofia, ouvir jazz das onze da manhã às duas da tarde em dias ímpares, cozinhar, planear a destruição de Cartago, escravizar um planeta vizinho habitado por pachorrentas criaturas azuis ou perseguir virgens para lhes extrair o sangue para o pequeno-almoço). Enredos principais e secundários com início, meio e fim. Nada de portas deixadas abertas ou fios sem nó. Se um livro for um hambúrguer, estes elementos serão a rodela de tomate, o pickle, o pingo de mostarda ou a semente de sésamo sobre o pão. Mínimos na sua importância individual, mas essenciais para o resultado final.

Quando o ano chega ao fim, fazem um balanço e publicam listas de livros lidos, podendo mesmo atribuir classificações às dezenas de cada mês ou ordená-las por ordem de recomendabilidade. Não é fácil de fazer e exige esforço muitas vezes desmedido. Afinal, um fumador também perde a conta aos cigarros fumados e um cocainómano não se dá ao trabalho de somar o comprimento das linhas que lhe entraram pelas narinas. Porque quem lê ao quilo é um viciado como outro qualquer. A haver diferença, talvez esteja no facto de não transformarem quem se senta ao lado em "leitor passivo". Mas também estouram orçamentos e, muitas vezes, correm o risco de precisar de arrumar carros para pagar a conta da Fnac, da Amazon e do Book Depository. E as horas passadas a ler podem prejudicar seriamente os olhos, fazendo-os cair ao chão e rebolar para baixo de um móvel, onde passarão anos até serem encontrados cobertos de cotão.